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O uso indevido do termo "gerenciamento de unidades de saúde" por organizações sociais

Autoria: Valéria Alpino Bigonha Salgado


A terminologia “gerenciar serviços públicos de saúde”, frequentemente adotada em leis, normas e documentos técnicos para definir a natureza das relações estabelecidas por Secretarias Estaduais ou Municipais de Saúde com entidades civis sem fins lucrativos qualificadas como organizações sociais, é imprópria e inadequada, considerando que, à luz das normas constitucionais e legais e da doutrina jurídica que disciplinam o Direito Administrativo no Brasil, não haveria a possibilidade de uma entidade privada ser contratada para "administrar" (gerenciar) um serviço público.


A Administração pública é administrada, exclusivamente, por servidores ou empregados públicos, investidos em cargos ou empregos públicos, nos termos estabelecidos no art. 37 da Constituição Federal. Conforme dispõe o Supremo Tribunal Federal, no Acórdão da ADI n. 1923, relativo à Lei Federal n. 9.637, de 1998, de organizações sociais, a publicização de serviços para uma organização social implica a terceirização da prestação de serviços e não da "gestão de serviços públicos", sendo que os serviços prestados pela OS são privados, ainda que de "interesse público".


A qualificação de entidades civis como organizações sociais visa à celebração de parcerias entre o Poder Público e a sociedade civil organizada, mediante fomento público (suplementação de recursos) para que a entidade funcione e consiga atingir os objetivos e as metas de desempenho institucional estabelecidas no ajuste da parceria (contrato de gestão), que convergem com o interesse público e com as políticas e estratégias estatais.


Nesse ambiente, é possível ceder imóveis e móveis públicos para a OS qualificada utilizar, na busca de alcançar os objetivos e metas de desempenho assumidos como compromissos perante o Poder Público; sendo que essa cessão se caracteriza como fomento público, junto com os recursos financeiros destinados à entidade, mediante transferência. No âmbito do contrato de gestão, não há pagamento à OS por serviços prestados, mas suplementação de recursos para que ela alcance sua finalidade institucional e atinja os objetivos fomentados pelo Governo.


Assim, ceder móveis e imóveis públicos para uma entidade privada utilizar na consecução de fins de interesse público é uma medida prevista expressamente no Direito Administrativo, dentro das normas que disciplinam a gestão patrimonial dos bens estatais. Entretanto, esses bens móveis e imóveis, quando cedidos para um ente privado, são utilizados na sua atividade que também é privada, regida pelo Direito Privado e administrada por seus próprios órgãos de direção superior (privados). O fato de uma entidade privada utilizar um imóvel e um móvel públicos não transforma a atividade que ela exerce em pública. E é importante que fique bem claro que não se transmuta a natureza de uma entidade privada e das atividades e serviços que ela presta pela mera celebração de um contrato de gestão. Contrato de gestão não é uma modalidade de concessão ou permissão e organizações sociais não são concessionárias de serviços públicos.


Portanto, por mais cacófono que possa parecer essa afirmativa, é de extrema importância reafirmar que a Administração Pública, por definição constitucional, é administrada por administradores públicos, investidos de cargos efetivos e/ou em comissão, que têm um conjunto de responsabilidades inerentes aos seus cargos previsto na Constituição Federal e nas Leis. As atividades e serviços públicos prestados por instituições estatais sujeitam-se a uma série de requisitos impostos pelo Direito Administrativo, que lhes é próprio, responsáveis diretamente, na esfera administrativa, civil e penal, por seus atos.


Ainda que uma pessoa privada também deva observar condições de uso e conservação de patrimônio público, cuja posse a ela foi transferida mediante cessão ou permissão de uso, isso não a torna um servidor, empregado e muito menos um administrador público.


No caso das organizações sociais, o que é transferido, mediante contrato de gestão, é a obrigação de prestar serviços de saúde - não públicos, mas privados, reconhecidos como de interesse público. Os bens - no caso as instalações e os equipamentos do hospital – podem ser cedidos à OS para apoiarem a execução de suas atividades, cuja natureza é privada e não pública, ainda que reguladas pelas condições e outras regras estabelecidas pelo gestor público no contrato de gestão e aceitas pela parceira privada (a organização social).


Portanto, é fundamental não confundir cessão de bens públicos com delegação de serviço público. A prestação de serviços públicos (à exceção das concessões e permissões, previstas no art. 175 da Constituição Federal) é prerrogativa dos órgãos e entidades da Administração Pública, nos limites das atribuições que lhe foram formalmente delegadas por lei, decreto ou portaria.


As atividades e serviços públicos de um hospital público integrante da estrutura organizacional de uma Secretaria de Saúde, por exemplo, são exercidos por gestores e agentes públicos ocupantes dos cargos públicos. O hospital público não corresponde, simplesmente, ao seu patrimônio. Trata-se do conjunto de competências e responsabilidades legais e normativas estabelecidas; de cargos em comissão e cargos efetivos que integram a sua estrutura; de gestores e servidores públicos; e, também, de bens móveis e imóveis e outros recursos logísticos destinados ao exercício de suas competências.


O serviço é a ação, é a responsabilidade do administrador público e dos servidores, regida pelas regras exclusivas do Direito Público. E, na forma da Constituição Federal, não se pode transferir a gestão da Administração Pública para um particular. Há profundas diferenças intrínsecas, entre um serviço público, prestado segundo as regras públicas e um serviço privado, realizado por uma entidade privada, qualificada como uma organização social.


São questões conceituais basilares e muito importantes para estabelecer e disciplinar os limites entre a atuação pública e privada, sendo que tais limites devem ser corretamente compreendidos, aplicados e defendidos pelos gestores públicos de saúde e seus servidores e empregados públicos. Quando se celebra um contrato de gestão, passa-se uma atividade (que deixa de ser eminentemente pública) para uma entidade privada exercer, reconhecendo-a como de interesse público. É inclusive o que entende o Supremo Tribunal Federal, na sua decisão acerca da Ação Direta de Inconstitucionalidade 1.923, de 2005.


Para consultar outros artigos da Domingueira da Saúde Gilson Carvalho. Acesse aqui.





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